segunda-feira, 19 de maio de 2014

As vicissitudes de um símbolo

     Uma estrutura surge por um motivo, desempenhando uma dada função. Porém, ao longo do tempo, a função desempenhada pode já não mais existir, ou ter sido bastante modificada, de forma que a estrutura continua existindo como testemunha de um passado longínquo. Como a fossilização gênica é um fenômeno que rapidamente elimina estruturas sem função, o mais comum é termos uma mudança na função desempenhada por certa estrutura, o que em biologia evolutiva chamamos de exaptação.
     É com esse fenômeno em mente, de algo que surge com uma função ou significado e passa a ter uma função ou significado diferente, que eu gostaria de falar do caduceu. Para quem não sabe, o caduceu é o bastão de Hermes (o Mercúrio romano), o deus mensageiro do olimpo. É um bastão ricamente trabalhado, com duas asas em seu topo e contendo duas serpentes enroladas. Por ser o bastão de Hermes, o caduceu é o símbolo do comércio, e é comumente usado até hoje como brasão nas faculdades de ciências econômicas, comércio exterior, contabilidade etc.


 

 

     O símbolo da medicina, por outro lado, é o bastão de Asclépio (ou Esculápio). É um bastão bem mais rude, de madeira não trabalhada, nodosa, com apenas uma serpente enrolada. Desde o fim da idade média um ou outro uso inadequado do caduceu como símbolo da medicina tem sido registrado, mas a coisa complicou pra valer quando em 1902 o US Army Medical Corps usou incorretamente o caduceu em seu brasão. A partir daí o uso do caduceu como símbolo da medicina tem sido cada vez mais comum.

     Assim, o caduceu, que originalmente representava o comércio, passou a representar a medicina. Bem, até pouco tempo eu cria que houvesse apenas duas etapas, o bastão de Asclépio sendo usado inicialmente como símbolo da medicina e, em seguida, o caduceu. Contudo, descobri que há uma etapa anterior, um símbolo da medicina anterior ao próprio bastão de Asclépio.

     Já faz vários anos que comprei o “Invertebrate Zoology”, do Barnes, a sexta edição (nota: a tradução portuguesa desta edição é bastante mal feita, e deve ser evitada). Por uma rachadura na lombada do meu exemplar, sempre que vou lê-lo ele abre na página 303, onde há a foto de um verme, do Gênero Dracunculus sp, sendo enrolado num pequeno pedaço de madeira. Já vi essa foto inúmeras vezes, mas nunca dei atenção ao texto da página. Eis que, num dia desses, peguei o Barnes para ler e, como sempre, ele abriu na página 303. Mas, dessa vez, não sei por que, resolvi ler o texto da página, ao lado da foto. Lá o autor afirma que a forma tradicional de tratar esse verme consistia em, quando o verme emergia das lesões ulceradas da pele, enrolá-lo lentamente em um graveto, por um período que iria de horas a semanas. Segundo Barnes, o símbolo da medicina era originalmente o verme Dracunculus  medinensis (Nematódeo) sendo enrolado num graveto, para apenas depois de diversas modificações tornar-se uma cobra enrolada num bastão nodoso.
 

     Sendo isso verdade, e não se trata de uma hipótese absurda, teríamos aqui não duas mas três etapas: o símbolo que era originalmente um verme enrolado num graveto tornou-se uma cobra enrolada num bastão para, em seguida, ser substituído pelo caduceu, com as duas cobras envolvendo o bastão alado de Hermes.

     Há ainda muito o que se pesquisar para saber se o símbolo original da medicina era uma cobra num bastão ou um verme num graveto. Contudo, convém reafirmarmos que o caduceu não é o símbolo da medicina. Ou, pelo menos, não era. Quando o uso faz a norma, algo tão comum nos dias de hoje, a opinião da maioria transforma-se rapidamente em verdade absoluta.


fonte: http://biologiaevolutiva.wordpress.com/2012/05/14/as-vicissitudes-de-um-simbolo/

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Núcleo celular o centro de comando que poucos conheçem.

Colunista apresenta estruturas do núcleo das células das quais você provavelmente nunca ouviu falar.
Por: Jerry Borges








Robert Brown (1773-1858), botânico escocês que descreveu o núcleo celular em 1839, retratado pelo pintor inglês Henry William Pickersgill (1782-1875). 


Nossos professores comumente afirmam que a composição do núcleo da célula é simples e que ele possui apenas uma matriz aquosa, denominada nucleoplasma, na qual estão imersos os cromossomos e alguns nucléolos, responsáveis pelo armazenamento de moléculas de RNA ribossômico. Contudo, essa definição simplista está longe de descrever toda a dinâmica e complexidade da região nuclear, responsável pelo comando das células. Por que há, então, essa enorme diferença entre o que a ciência sabe sobre o núcleo celular e o que é ensinado em nossas escolas?

O núcleo foi a primeira organela a ser descrita. Observações dessa região celular foram feitas em 1682 pelo “pai da microbiologia”, o holandês Antonie van Leeuwenhoek (1632-1723), e posteriormente, em 1802, pelo botânico austríaco Franz Andreas Bauer (1758-1840). Contudo, a descoberta do núcleo celular é frequentemente atribuída a outro botânico: o escocês Robert Brown (1773-1858), que descreveu essa região celular 29 anos depois (1839), a partir do exame de células de orquídeas.

Contudo, nenhum dos três arriscou-se a indicar uma função para essa estrutura recém-descoberta. O primeiro a sugerir um papel para o núcleo celular foi o alemão Matthias Schleiden (1804-1881), botânico considerado um dos fundadores da teoria celular, que apresenta as células como a unidade funcional básica dos seres vivos. Um ano antes da descrição de Brown, Schleiden propôs que o núcleo seria o local responsável pela geração de novas células.

As afirmações de Schleiden foram duramente criticadas e somente em 1876 as pesquisas do zoólogo alemão Oscar Hertwig (1849-1922) com embriologia de ouriços marinhos, anfíbios e moluscos indicaram que o núcleo celular tinha participação no processo de formação de novas células e, posteriormente, de novos seres vivos. A participação dessa organela nos processos hereditários tornou-se clara apenas algumas décadas depois, no início do século 20.

Origem do núcleo
O núcleo celular representado em desenho do botânico alemão Walther Flemming (1843-1905) publicado em 1882, poucos anos depois que se confirmou que essa estrutura estava envolvida na reprodução celular.


Ao longo do último século, diversas teorias têm sido propostas para descrever a origem evolutiva do núcleo celular. Essas especulações incluem a possibilidade de que essa organela tenha se estabelecido nas células como resultado de uma relação endossimbiótica análoga à que estaria por trás da origem dos cloroplastos e mitocôndrias, segundo a teoria proposta por Lynn Margulis (1938), professora da Universidade de Massachusetts Amherst (EUA).

Essa teoria, conhecida como “modelo sintrófico”, afirma que um antigo representante de um grupo de microrganismos conhecidos como Archaea metanogênicas invadiu ou foi fagocitado por bactérias primitivas aparentadas com as atuais mixo-bactérias. Por algum motivo desconhecido, esse organismo não foi digerido pelas bactérias e, após algum tempo, a convivência passou a apresentar benefícios para ambas as células que, assim, passaram a viver juntas.

A similaridade entre algumas proteínas nucleares presentes nas células eucarióticas e nas Archaea, como as histonas, e a semelhança entre algumas proteínas citoplasmáticas dos eucariótas e das mixo-bactérias (como as quinases e proteínas G, por exemplo) são citadas pelos defensores dessa teoria como provas dessa relação endossimbiótica.

Uma segunda teoria propõe que as células eucarióticas evoluíram a partir de formas primitivas aparentadas com as atuais bactérias planctomicetos, um grupo que possui um citoplasma subdividido por membranas e inclusive uma estrutura nuclear. Outra hipótese, mais controversa, afirma que a região nuclear surgiu após a invasão de células primitivas por vírus (provavelmente poxvírus). Esse modelo se baseia na similaridade entre células eucarióticas e vírus em relação as suas moléculas de DNA, as enzimas conhecidas como DNA polimerases e algumas proteínas.

Outro modelo alternativo, mais recente, denominado hipótese da exomembrana, sugere que o núcleo surgiu após a produção de uma nova membrana externa em torno do envoltório celular original. Essa nova cobertura seria a atual membrana plasmática e a membrana celular original se tornou a atual membrana nuclear ou carioteca.

O núcleo tradicional
O núcleo celular é a maior organela das células eucarióticas, ocupando nos mamíferos, em média, cerca de 10% do volume celular. Apesar de seu tamanho avantajado, ele ainda é envolto em mistério.
Células humanas cultivadas em laboratório com o núcleo destacado por um corante azul (foto: Wikimedia Commons).


Os livros didáticos afirmam que o núcleo celular é delimitado pela carioteca, um envoltório formado por uma membrana interna e outra externa contínua com o retículo endoplasmático rugoso. A carioteca também possui uma série de poros nucleares aquosos associados com a permeabilidade seletiva entre o núcleo e citoplasma, que impede, por exemplo, que o material genético “escape” para fora do núcleo.

Internamente, o núcleo é composto por uma matriz aquosa, denominada nucleoplasma. Ali estão imersas uma rede de proteínas filamentosas do citoesqueleto celular responsáveis por dar sustentação a carioteca e por manter cromossomos e outros componentes nucleares em regiões específicas.

O material genético celular está reunido em um grupo de longas moléculas de DNA denominadas cromossomos que, na maior parte do ciclo celular, estão associadas com proteínas (principalmente histonas), formando um arranjo denominado cromatina. Os nucléolos são outro componente evidente do núcleo e estão relacionados com a síntese e edição de moléculas de RNA ribossômico (RNAr).





 

 Componentes menos conhecidos

Além das estruturas acima citadas, existe uma série de outros componentes nucleares que você provavelmente não conhece e que não estão na maioria dos livros didáticos. Entre eles, estão as estruturas conhecidas como corpos de Cajal, que são possivelmente locais associados com a maquinaria de transcrição celular através do processamento de diversos tipos de RNA.

O núcleo contém ainda os chamados domínios PIKA (sigla em inglês para associações cariossomais polimórficas da interfase). Essas estruturas foram descobertas apenas em 1991 e, apesar de suas funções ainda não serem claras, acredita-se que elas estejam associadas com a produção de fatores relacionados com a transcrição de alguns tipos de RNAs. Outros componentes pouco conhecidos são os corpos PML (“leucemia promielóctica”, na sigla em inglês), dispersos pelo nucleoplasma e relacionados provavelmente com a regulação da transcrição de outras regiões nucleares.


Surpreso? Pois a lista ainda não acabou! Os domínios SC35 ou speckles (assim chamados devido ao seu aspecto disperso e amorfo observado nas células de mamíferos) são regiões móveis envolvidas no processamento de RNA, na regulação transcricional e na apoptose. Por fim, temos os paraspeckles, descobertos em 2002. Presentes no espaço intercromatínico, essas estruturas dinâmicas se alteram em resposta a mudanças na atividade metabólica celular.

Apesar de ainda conhecermos pouco sobre a biologia desses compartimentos nucleares, descobertas recentes indicam que o núcleo celular é muito mais complexo do que se pode pensar após um exame superficial. Embora essa organela não apresente uma distinção morfológica entre as suas regiões, sua especialização territorial fisiológica e sua plasticidade funcional tornam o ambiente nuclear muito dinâmico e capacitam-no para desempenhar um sem-número de tarefas metabólicas necessárias para a preservação da biologia celular. Resta agora esperar para ver isso em nossos livros e em nossas aulas.


Jerry Carvalho Borges
Universidade do Estado de Minas Gerais
04/07/2008
 

SUGESTÕES PARA LEITURA
Handwerger, K.E. e Gall,J.G. (2006). Subnuclear organelles: new insights into form and function. Trends Cell Biol. 16, 19-26.
Lopez-Garcia, P. e Moreira, D. (2006). Selective forces for the origin of the eukaryotic nucleus. Bioessays 28, 525-533.
Martin, W. (2005). Archaebacteria (Archaea) and the origin of the eukaryotic nucleus. Curr. Opin. Microbiol. 8, 630-637.
Pederson, T. (2004). The spatial organization of the genome in mammalian cells. Curr. Opin. Genet. Dev. 14, 203-209.
Rippe, K. (2007). Dynamic organization of the cell nucleus. Curr. Opin. Genet. Dev. 17, 373-380.
Rowat, A.C. et al. (2008). Towards an integrated understanding of the structure and mechanics of the cell nucleus. Bioessays 30, 226-236.