Uma estrutura surge por um motivo, desempenhando uma dada função. Porém, ao longo do tempo, a função desempenhada pode já não mais existir, ou ter sido bastante modificada, de forma que a estrutura continua existindo como testemunha de um passado longínquo. Como a fossilização gênica é um fenômeno que rapidamente elimina estruturas sem função, o mais comum é termos uma mudança na função desempenhada por certa estrutura, o que em biologia evolutiva chamamos de exaptação.
É com esse fenômeno em mente, de algo que surge com uma função ou significado e passa a ter uma função ou significado diferente, que eu gostaria de falar do caduceu. Para quem não sabe, o caduceu é o bastão de Hermes (o Mercúrio romano), o deus mensageiro do olimpo. É um bastão ricamente trabalhado, com duas asas em seu topo e contendo duas serpentes enroladas. Por ser o bastão de Hermes, o caduceu é o símbolo do comércio, e é comumente usado até hoje como brasão nas faculdades de ciências econômicas, comércio exterior, contabilidade etc.
O símbolo da medicina, por outro lado, é o bastão de Asclépio (ou Esculápio). É um bastão bem mais rude, de madeira não trabalhada, nodosa, com apenas uma serpente enrolada. Desde o fim da idade média um ou outro uso inadequado do caduceu como símbolo da medicina tem sido registrado, mas a coisa complicou pra valer quando em 1902 o US Army Medical Corps usou incorretamente o caduceu em seu brasão. A partir daí o uso do caduceu como símbolo da medicina tem sido cada vez mais comum.
Assim, o caduceu, que originalmente representava o comércio, passou a representar a medicina. Bem, até pouco tempo eu cria que houvesse apenas duas etapas, o bastão de Asclépio sendo usado inicialmente como símbolo da medicina e, em seguida, o caduceu. Contudo, descobri que há uma etapa anterior, um símbolo da medicina anterior ao próprio bastão de Asclépio.
Já faz vários anos que comprei o “Invertebrate Zoology”, do Barnes, a sexta edição (nota: a tradução portuguesa desta edição é bastante mal feita, e deve ser evitada). Por uma rachadura na lombada do meu exemplar, sempre que vou lê-lo ele abre na página 303, onde há a foto de um verme, do Gênero Dracunculus sp, sendo enrolado num pequeno pedaço de madeira. Já vi essa foto inúmeras vezes, mas nunca dei atenção ao texto da página. Eis que, num dia desses, peguei o Barnes para ler e, como sempre, ele abriu na página 303. Mas, dessa vez, não sei por que, resolvi ler o texto da página, ao lado da foto. Lá o autor afirma que a forma tradicional de tratar esse verme consistia em, quando o verme emergia das lesões ulceradas da pele, enrolá-lo lentamente em um graveto, por um período que iria de horas a semanas. Segundo Barnes, o símbolo da medicina era originalmente o verme Dracunculus medinensis (Nematódeo) sendo enrolado num graveto, para apenas depois de diversas modificações tornar-se uma cobra enrolada num bastão nodoso.
Sendo isso verdade, e não se trata de uma hipótese absurda, teríamos aqui não duas mas três etapas: o símbolo que era originalmente um verme enrolado num graveto tornou-se uma cobra enrolada num bastão para, em seguida, ser substituído pelo caduceu, com as duas cobras envolvendo o bastão alado de Hermes.
Há ainda muito o que se pesquisar para saber se o símbolo original da medicina era uma cobra num bastão ou um verme num graveto. Contudo, convém reafirmarmos que o caduceu não é o símbolo da medicina. Ou, pelo menos, não era. Quando o uso faz a norma, algo tão comum nos dias de hoje, a opinião da maioria transforma-se rapidamente em verdade absoluta.
fonte: http://biologiaevolutiva.wordpress.com/2012/05/14/as-vicissitudes-de-um-simbolo/